terça-feira, 11 de maio de 2010

No hall da entrada...

Não é fácil dissertar sobre partes e contra-partes que vivem no nosso aquário, aquele que assenta na mesinha de madeira no hall da entrada; a peça de mobília que está lá há mais tempo que nós porque lembramo-nos de vê-la lá desde que nos conhecemos… tem um cheiro antigo e pó no verniz. A esse cantinho nostálgico, que enraizou desde sempre nessa calma, não é fácil chegar!

Sei que passo todos os dias por ele, que quando abro a porta da entrada, ainda de compras e correio na mão, é a primeira coisa que me recebe! É lá que sempre pouso as chaves, de modo esquecido e levantando pó e lascas…

O aquário não tem peixes mas a água estagnada de um verde translúcido parece esconder alguma vida. Faz-me lembrar os sonhos ou aquelas memórias distantes que já não se mostram com clareza…

Às vezes, quando venho menos carregada, pouso o saco de congelados no chão e, depois de largar as chaves, fixo o aquário de cócoras e mergulho um dedo naquela água. Como se fosse o peixe que não existe, sinto toda aquela melancolia estagnada a dificultar-me a respiração. Neste nadar inerte permaneço mais tempo do que sempre devia. Tiro o dedo, passo-o pelas calças de ganga, como quem não quer a coisa, e levo o saco dos “descongelados”.

Na gaveta da mesinha que o suporta guardo um rolo de papel auto-colante colorido. Tem um padrão às riscas, que alterna o vermelho com o branco. Sempre tive ideia de que um aquário de água mole e verde não agradava a muitas vistas e recortar o papel autocolante e fazê-lo coincidir com as arestas daquele paralelepípedo derrubado tornou-se uma rotina.

A senhora Olga da Papelaria “papel e canetas”, nome pouco imaginativo que sempre me despertou curiosidade, quando me vê pela vitrina sorri e acena-me com a tesoura que acabou de retirar de cima do balcão.

- Então Joaninha, são as medidas e o rolo do costume?

Ela deve-me achar estranha. O seu sorriso condescendente e materno dá-me sempre ideia de que ela tem pena de mim. Talvez me ache uma rapariga solitária que se prendeu a um ritual rígido para não pensar na solidão! Esta ideia distorcida de quem recalcou a sua melancolia e a reconhece como tristeza nos outros deixa-me sempre angustiada.

Houve um dia em que me chegou a perguntar:

- Joaninha, filha, diz-me uma coisa: para quê tanto papel às riscas? E sempre o mesmo?

Disse-lhe, em tom de brincadeira, que trabalhava para a editora dos livros do Wally e que a miudagem dos dias de hoje não era muito diferente das de outros tempos. Sei perfeitamente que a resposta não lhe saciou a curiosidade nem lhe diminuiu a pena, ela sorriu com esforço e entregou-me a compra. Ao sair da papelaria imaginei-a debruçada sobre o balcão a ver-me distanciar e perder-me no contorno da vitrina…imaginei o seu ar pensativo e talvez meio lábio mordido!

Sei bem que ela compra tanto papel às riscas quanto eu! E sei também que, quando estamos de costas voltadas uma para a outra, ela pensa no meu aquário verde que não conhece e eu penso nos seus olhos tristes que não se apagam com o seu sorriso nem se perdem no pensamento...

Fascina-me o facto de termos todos um aquário velho perdido no canto da casa sobre uma mesinha de madeira descascada; aproxima-nos como seres humanos.
É bonito pensar que todos nós paramos num momento do dia de cócoras em frente a um aquário sem peixes. Que todos mergulhamos um dedo numa água suja que não nos repugna, pelo contrário, preenche-nos…

E continuamos a forrá-lo mesmo sabendo que já todos aprendemos a reconhecer o verde da água que desbotou para o dedo e que não ficou nas calças de ganga!

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